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Comecemos por uma reminiscência pessoal: em meados da década de 1970, encontrei numa pequena livraria de bairro, uma edição de bolso de 2001: uma odisseia no espaço, de Arthur C. Clarke. Li o livrinho em poucos dias, e fiquei fascinado pelo enredo e pela temática – de resto não muito distantes de meus interesses na época.
Naquele mesmo ano, creio, houve sessões do filme homônimo, dirigido por Stanley Kubrick, no saudoso Cine Comodoro, na avenida São João, em São Paulo. A experiência de ver, na imensa tela (sim, havia telas gigantescas naquele tempo), a materialização do que eu lera, marcou-me intensamente e me levou a um mergulho um pouco mais profundo naquele universo.
Salvo engano de minha parte, mais ou menos na mesma época, ou alguns anos antes, a TV reprisava a série Jornada nas estrelas – hoje chamada somente por seu nome em inglês, Star Trek –, e eu me via como parte daquela tripulação, vestindo o uniforme azul dos oficiais de Ciências. O mais perto que cheguei disso, foi usar uma réplica dele numa das convenções do fã-clube da série aqui no Brasil.
Não me tornei um cientista, muito menos um oficial da Frota Estelar; mas até hoje sobrevive em mim a disposição de jamais limitar meus conhecimentos à minha área de formação e sempre ter disposição de aprender mais a respeito de tudo, ou quase tudo. Talvez eu tenha sido um dos poucos, entre meus amigos e colegas, a desenvolver esse espírito… vamos dizer… científico. Culpa, talvez, de minha precoce entrada no mundo da science fiction (como se convencionou dizer).
Os entraves à divulgação da literatura de ficção científica
Dito isso, creio que um dos entraves à divulgação e disseminação da literatura de ficção científica no ambiente escolar deriva de certo preconceito quanto à modalidade literária (cujas origens são de vária ordem, mas que não serão tratadas aqui para poupar o leitor de digressões alongadas e aborrecimentos).
A almejada interdisciplinaridade e a quase utópica multidisciplinaridade parecem existir somente nas propostas de ensino laboriosamente montadas por especialistas.
Outro dos entraves está ligado à formação dos professores, quase todos especialistas em suas respectivas áreas, de modo que um professor de Língua Portuguesa, atribulado com a necessidade do cumprimento de uma programação, não teria tempo para lidar com ficção científica; um professor de qualquer disciplina das antigas Ciências Exatas ou das Biológicas – exceto em casos excepcionais ̶ não saberia lidar com a parte literária propriamente dita. Assim, postas em termos práticos, a almejada interdisciplinaridade e a quase utópica multidisciplinaridade parecem existir somente nas propostas de ensino laboriosamente montadas por especialistas.
É sintomático que, presentemente, a ficção científica seja relegada ao plano das excentricidades e do sub-sub-subgênero literário. Se o ensino de Ciências não for considerado importante, como esperar que haja produção científica de monta?
Tal como no futebol, não se formam craques no varejo, mas no atacado. Sem um ensino motivador, que eu entendo desafiador, e não divertido, ficaremos deitados eternamente em berço esplêndido, esperando que surjam novos Pelés em ciências, sem que haja campos de várzea para a garotada bater bola. Sempre surgirão talentos, mas serão cada vez mais raros – e um país que se preza não pode depender somente dos bons ventos da Fortuna.
Ainda assim, vale insistir: a despeito de um histórico desprezo pelo conhecimento científico (ou mesmo por causa dele), penso que a ficção científica poderia e deveria ser utilizada no currículo escolar, pois oferece de uma única vez material de trabalho para quase todo o conjunto de disciplinas/habilidades preconizadas, até mais que as obras literárias canônicas.
A multidisciplinaridade e interdisciplinaridade das obras
Penso, por exemplo, em escritores fundamentais como H. G. Wells, Julio Verne, Arthur C. Clarke, Isaac Asimov, Ray Bradbury, entre muitos outros. De um livro como A máquina do tempo, é possível introduzir assuntos como a Física quântica, a teoria da evolução de Darwin, a história do pensamento no século XIX, a literatura cientificista do século XIX, as teorias eugênicas daquela época, etc. E o que não seria possível fazer com Vinte mil léguas submarinas, ou A ilha do dr. Moreau (e suas inúmeras releituras e derivações, na própria literatura, como A invenção de Morel, Adolfo Bioy Casares), por exemplo?
Como introduzir a ficção científica nas salas de aula
Não sendo sensato exigir de um único professor que faça a amarração entre todos os saberes, por que não promover seminários sobre um livro de ficção científica, com professores de diversas disciplinas discorrendo a respeito da obra no âmbito de suas respectivas áreas? O debate poderia envolver também eventuais adaptações cinematográficas/televisivas da obra, desde que essas adaptações não fossem o foco central. (Sim, sou defensor ferrenho da autonomia da obra literária.) A abordagem poderia ser ampliada para a leitura de obras de divulgação científica per si, como as de Stephen Hawking, Carl Sagan ou Neil deGrasse Tyson; enfim, as possibilidades seriam (e são) imensas e variadas quase ao infinito.
Em um país como o nosso, cujas carências limitam grande parte das condições de desenvolvimento, não vejo motivos para descartar a literatura de ficção científica como forma de introduzir os alunos no mundo da Ciência e, por extensão, no universo do conhecimento humano em sua totalidade.
Se não é possível, por limitações econômicas, haver laboratórios em todas as escolas, o livro continua sendo a modalidade mais simples e acessível de estabelecer o primeiro contato com “novas formas de vida, novas civilizações”. E, se é assim, por que não fazer bom uso de um gênero que mescla linguagem, ciência e imaginação para vislumbrar – utópica ou distopicamente – o futuro, discutindo o que somos e o que poderemos ser? Audaciosamente ou não, é um modo de ir “aonde ninguém jamais esteve”.
Ricardo Koichi Miyake
Mestre em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Foi professor de Literatura no Ensino Superior ao longo de 25 anos. Publicou Livro de coisas (poemas) pela Com-Arte, além de outros textos em coletâneas e sites literários.
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